Élvio Camacho em “Profecias” com encenação de Miguel Loureiro

Profecias

(de livros proféticos do Antigo Testamento)

Encenação Miguel Loureiro

com Paula Erra e Élvio Camacho

Desenho de Luz Ricardo Campos

Uma nova criação da Teatro Feiticeiro do Norte

Local Balcão Cristal

11 a 21 de novembro

e de 9 a 19 de dezembro,

de quartas a sextas, às 21H, e sábados, às 18H

apresentações especiais de Natal, 23 e 30 de dezembro, às 18H

«No seguimento de trabalhos anteriores com forte cunho teológico, a saber: o diptíco Esboço/Acto (Casa Conveniente/Gal.ZDB, Lisboa 2000), A Vida de Maria de R.M.Rilke (São Luiz, Lisboa 2011), Lavda, Exercício de Piedade de Mestre André Dias (Capela do Teatro Taborda, 2012) ou ainda In Hora Mortis de Thomas Bernhard (Capela do Teatro Taborda, Lisboa, 2013; Balcão de Cristal, Funchal, 2017), proponho-me agora, a convite da Teatro Feiticeiro do Norte, dos criadores Élvio Camacho e Paula Erra, debruçar-me ainda uma vez mais sobre este género que, para minha organização, chamo Cena Teológica.
O material textual deste espectáculo seria então centrado em três livros proféticos do Antigo Testamento: Epístolas de Jeremias, Livro de Susana e Bel e o Dragão. O que une estes três livros é o facto de fazerem parte da apocrifia bíblica, embora as Epístolas de Jeremias estejam incluídas na parte final de Baruque; enquanto Susana e também Bel e o Dragão, em passagens de Daniel. Mas só agora se apresentam na sua versão completa e se organizam em livros autónomos. São livros do Antigo Testamento, alguns aperfeiçoados em termos de edição com as magníficas descobertas dos Manuscritos do Mar Morto já no século XX, dados agora ao nosso mundo editorial, e traduzidos do grego — a Septuaginta — pela mão sábia de Frederico Lourenço, no seu magistral projecto bíblico. São, portanto, literatura da Bíblia Grega que, não fazendo parte do cânone católico, merecem uma revisão cénica para melhor os divulgar e dar a conhecer.

O que nos revelam estes livros? É certo que são livros doutrinários, mas em que a doutrina nos é passada por belas histórias ou sermões, que ainda hoje têm o poder de nos encantar, de as seguir-mos, de as escutar. As Epístolas de Jeremias (profeta bíblico com direito a duas “autorias” na Bíblia, o Livro de Jeremias e as Lamentações) versam assim os tempos do exílio babilónico, quando muito do povo de Deus se relaxou na prática da fé que era a sua e se deixou tentar pela idolatria dos falsos deuses pagãos. O sermão destas Epístolas, além de um belíssimo documento de oratória, oferece-se então em fábula para ser proclamada na viva voz de um palco, com o seu cortejo de figuras e de pensamentos que qualquer público facilmente deduzirá nestes tempos de falsos ídolos que são também os nossos: e não me refiro só ao dinheiro.

Em Susana, bela virgem que provoca a tentação dos libidinosos, estamos perante uma lição do triunfo da Virtude. A virtude não só da pureza sexual, mas a virtude como emanação da verdade. O que se joga no Livro de Susana é a preseverança da virtude, em passagens de beleza sensual raras nas Sagradas Escrituras. Talvez por isso esta personagem e a sua fábula sejam das mais representadas na pintura ocidental, nos períodos da Renascença e do Barroco. Uma estimulante fonte para compor cena, como é quase toda a pintura antiga.
Bel e o Dragão divide-se em três partes ( Bel, o Dragão e Na Cova dos Leões) e quase que se poderia falar de uma trilogia para cena à maneira dos ciclos da tragédia grega, se não fosse cada uma das partes constituída por narrativas avulsas, embora na mesma linha teológica. Com efeito, pouco em comum existe na história do deus Bel (que, apesar de ser feito de pedra, comia as oferendas dos fiéis, residindo aí a sua excepcionalidade, desmascarada pelo profeta Daniel), com a narrativa autónoma do Dragão que, apesar de não ser um ídolo como Bel, é tido como ente reverencial para os babilónios e que Daniel mata com a sabedoria própria dos iluminados; por fim Na Cova dos Leões, Daniel é agraciado pela milagrosa Providência, ao ser poupado às bestas de forma incompreensível segundo as leis naturais, mas como sinal da misericórdia e da magnanimidade divinas.

A simplicidade das narrativas, mas com a inerente complexidade teológica, pode então constituir matéria cénica, de espectáculo, não só pela atração das histórias em si, das magníficas fábulas que elas enformam, mas pelo valor da palavra ( ou da Palavra, como dizia Dreyer) que nestes escritos se expressa bela (a que a tradução de Lourenço não será alheia) e que hoje como outrora nos ajudam a pensar o nosso lugar, o lugar da nossa humanidade, em tempos conturbados, e até muitas vezes vin- do essa conturbação de falsos preceitos religiosos.
Reler então estas histórias com dois actores que dominam técnica e teoricamente o material proposto, focando-nos sobretudo na enunciação, na oratória, na capacidade de contar histórias, de mimar passagens, de as relacionar com sons, imagens e estudos, provenientes de uma aturada pesquisa e dedicada preparação. Um trabalho de fé, num amplo sentido.»

Miguel Loureiro